20070828

Complicada

Larga-me do redor do teu abraço,
Do odor baço dos teus beijos,
Do calor do teu pescoço.
Joga-me ao poço das amarguras
Onde eu possa sentir o fundo e desejar ternuras
As mesmas que tu almejas oferecer mas escondes
As que dás mas que te arrependes
Porque eu disse que não as quero.

Roubaram-me.

Aquela era a minha canção. Não era nem a primeira, nem a última das canções da lista. Estava escondida no meio, como um segredo bem guardado. Não era assim tão melódicamente diferente das outras. E no entanto, como um segredo subliminar, algo naquela música despertou a minha atenção - era daquelas músicas desconhecidas para os outros, uma música que conhecia de cor, desde os instrumentos ás variações de voz da cantora. Nem vos sei dizer quantas vezes a cantei, repetidamente, pela boca ou pelo cérebro. Ninguém mais a conhecia ou gostava dela tanto quanto eu. Tinha arrepios na espinha só de prever o seu som. E no entanto, gradualmente, deixei de a ouvir. No meu mp3, outros cds a substituiram. Mas ela estava sempre na minha cabeça, um amor adiado, acreditem!

Foi hoje que a vi de novo.
As suas letras brutalmente expostas no messenger mais comum.
Como se pertencessem a outra pessoa qualquer.
Como posso explicar a raiva, o ciúme, a inveja... como lhe posso dizer que não pode ouvi-la, adorá-la, pronunciá-la e dissecá-la assim, como eu já fiz?
A verdade sei-a bem. Ela não me pertence. Mas continuo a pensar que sim. E por momentos imagino que, anteriormente, já alguém a tiha escutado e possuído. Talvez seja esse mesmo o seu destino, pousar de ouvido em ouvido, sendo amada por todos à vez. A quem será que roubei eu aquela música?

20070827

Comprimidos Mágicos

Sentada no chão, encostou-se pesadamente na lateral da cama, abrindo os braços. Os seus dedos e a palma da mão, extra-sensibilizados pelos comprimidos, irritaram-se com a superfície áspera da colcha de flores. Por momentos sentiu-se tão leve que nem todas as suas forças conseguiram manter a cabeça direita, e esta pendeu devagar para trás, numa posição que seria normalmente desconfortável mas que agora era inevitável. Sentia uma fina camada de suor colar-lhe as dobras do corpo umas às outras, ao chão; e pequenas gotas de vapor acumulavam-se nos seios cónicos pendendo dos mamilos nus e arrepiados. A náusea ciclica misturava-se com uma agradável dor nas têmporas. Apesar de estar completamente apoiada na sua cama, sentia o corpo e o quarto a andar às voltas, como te as suas tonturas se expandissem a todo o mundo que, fundido com ela, girasse obliquamente. Tinha a impressão que por baixo dela, e espreitando ameaçadoramente por entre os tacos de madeira, um gigantesco buraco de raios liláses brilhantes se preparava para a engolir e a tudo o que existia. Mas apesar do medo, uma sensação de paz e tranquilidade atrasavam a sua respiração. Foi com a boca largamente aberta, procurando aspirar todo o oxigénio do ar, que viu uma rapariga encostada à porta. Usava um vestido curto de mais para a sua largura de pernas, cujo cabedal se enrugava à volta das coxas e nos círculos dos seios. O joelho esquerdo estava ligeiramente flectido, e fumava um cigarro da maneira mais sexy que já tinha visto. Os seus lábios redondos escarlate chupavam o tabaco deliciadamente e depois expelia o fumo pelo nariz, que subia em espirais e parecia prender-se no seu cabelo negro curto e espetado. Ela sorria sarcasticamente, mas não foi capaz de perceber de que cor eram os seus olhos. Sabia que era impossível estar ali alguém. Quando finalmente conseguiu virar a cabeça para o outro lado, ouviu as ruidosas gargalhadas da rapariga. Ria-se alto como se alguém acabasse dedizer uma piada, como se delizasse pela parede e caísse no chão, descontrolada. Os seus risos elevaram-se no ar e subiram de tom até que já não eram risos mas uma sirene ensurdecedoura. Quando voltou a olhar, só havia a velha parede branca. E foi quando a maçaneta rodou, e viu a sapatilha de um homem a espreitar atrás da porta. Conhecia aquela sapatilha de algum lado, mas não se conseguiu lembrar de onde. A dor nas têmporas aumentou e cheirou-lhe a lixo. O homem aproximou-se rápido demais para que conseguisse focar-lhe a cara, pegou-lhe no queixo com uma mão fria e beijou-a longamente. Ela esforçou-se por sentir os seus lábios, mas tinha a impressão que mesmo a bouca tinha voado para outro lado e pairava sobre eles, junto ao candeeiro. Só sentia a mão a segurar-lhe o rosto, rigidamente, e tinha a certeza que o polegar a apertava tanto que já lhe tinha furado a pele, trespassando-a até ao osso. Ele pegou-lhe cuidadosamente como a um bebé, e ela deixou-se levar, com o corpo mole e os pés e a cabeça caindo do seu regaço. Poisou-a na cama, nua como estava, e despiu-se. Ela não conseguia mover-se e muito menos abrir os olhos, mas escutou as fibras da camisola esticarem-se, eo feixo das calças abrir com dificuldade, a roupa a cair no chão. Ele deitou-se ao seu lado, com uma perna a entrelaçar-se na sua, e o seu corpo estava frio de mais. Lembra-se de pensar que dos seus beijos só sentia a pressão na pele. Era como se fosse uma concha que pairasse vazia, como se o seu espírito voasse por outros planetas enquanto o seu corpo balançava, suado, nas mãos do homem. Uma caímbra fortíssima paralisou-lhe todo o joelho esquerdo e quando tentou lá chegar deu-se conta de que ainda estava encostada à cama, com as nádegas pegajosas e as mãos estendidas. Sentia-se mal-disposta, mas menos tonta. Sentia-se livre. Mas já não tão livre, e os pés e o estômago urgiram-na a levantar-se e ir até à cozinha beber um copo de água.
Sentada nua, na cadeira forrada, pensava como seria mais fácil se pudesse falar com alguém. Se pudesse contar, mesmo a uma única pessoa, o que se passava. E sabia que gostavam dela o suficiente para a ouvir. E no entanto, sabia também que passado um mês de tudo aquilo, o peso da sua vida seria demais para eles. O peso do seu pensamento. É por isso que uma vez por semana, sentada no chão de madeira do seu apartamento, a rapariga toma os comprimidos mágicos anti-gravidade que elevam os seus pensamentos às estrelas, de onde esvoaçam rapidamente, até à semana que vem.

20070826

O morto-vivo

Todos os homens no mundo querem mais do que aquilo que têm. E esta frase-cliché nunca foi mais verdadeira do que nos olhos pálidos do meu pai. Mesmo que os meus focassem a lua-cheia incansávelmente, sentindo apenas o irregular movimento da paisagem alterando os lados da janela - eu sentia os seus olhos extraordinariamente abertos - uma massa branca com uma gota verde-ardósia no centro, por trás dos grandes óculos de aros dourados. Estava escuro, e por isso não sei se chorava - talvez chorasse por dentro, e provavelmente mais tarde - com aquela força que tem de falar com a voz firme quando se desfaz por dentro (isto dito, sempre).



O peso de tudo aquilo que é invisível (a sociedade, os costumes, os astros e deus) caíram-lhe em cima com o peso do absoluto e esmagaram-no contra o centro de si mesmo. Tem uma figura alta, forte, e no entanto atarracada e algo curvada sobre o seu estômago proeminente. Como se suportando um peso que o comprimiu e encurtou o seu corpo. E ele já não acredita em nada a não ser nos gestos violentos, da mesma violência que o obrigou a deixar de ser quem quer que pudesse ser, e o fez ser aquele bloco de carne com vida. Ele já não acredita senão nas projecções de fogo das bombas, se não no sangue espeço a escorrer das órbitas dos poderosos. Ele já não acredita senão nos corações selectivos dos humanos, que o excluem de si mesmo. Ele à sua frente ele só dispõe de uma rotina que lhe dilacera a alma, de falhas à frente e atrás que condicionam todos aqueles que o rodeiam. Chamam-se Anarquista. Dizem-no Autoritário. E o que ele queria era tão simples como qualquer desejo de uma criança: ele queria a perfeição.



A perfeição dele decorre de raciocínios diferentes dos meus - e isso eu sei desde cedo. Porque se desdobra numa vingança - num repor da ordem que foi abolida quando nasceu. Porque o meu pai nunca teve uma vida fácil - e era até fácil demais escrevê-la aqui, muito mais fácil do que vivê-la. Poderia até dizer que teve uma vida mais difícil do que aquilo que podia aguentar - independentemente do que dizem sobre deus. Não foi, no entanto, uma vida mais difícil do que aquilo que o seu corpo de homem aguentaria. E é assim que o vejo: ele morreu. Sentado no deserto em cima de um escorpião ou espancado nas traseiras da sua casa. Comido vivo por comprimidos, ou implodido, ou por combustão espontânea. Dele, resta apenas a carcaça rugosa da sua pele, as mãos àsperas e um coração que implora por alguém que leia nas suas palavras a sinceridade com que ele as tempera.



O meu pai deseja que o país arda. Que as regras definhem de fome e que as pessoas lutem com garras e armas contra a democracia. Deseja que o desembrulhem do plástico sufocante que o impede de abrir os braços, de encher o peito ou de respirar. Que a desforra chegue: porque o enganaram - disseram-lhe que podia ser feliz. E é com a cabeça ligeiramente pendida para o lado que afirma que não é feliz. Que deseja todos os dias morrer, quando dorme o que pode dormir porque é a única forma de sonhar. Visualiza na estrada à sua frente como a sua vida podia ter sido, e pergunta-se se é aquilo que faz ou aquilo que tem a certeza que é na sua cabeça mas não faz. O meu pai é um assassino interior, é um suícida, um colérico. O meu pai não tem espírito, mas tem alma - embora esta esteja corrompida por anos a mais de sonhos podres. Conduzindo maquinalmente por cima dos seus sonhos, como todas as pessoas maduras fazem, olha para mim de esguia e diz-me que eu tenho perspectivas, ao contrário dele. Porque eu ainda tenho tantos anos nas mãos como ele tem revoltas.



Mas eu não o vejo, porque acabou de passar uma estrela cadente. E já não desejo que o meu pai seja feliz, porque tenho medo que a sua felicidade seja a desgraça de muita gente. Já não desejo que morra, porque ele está morto. Já nem vale a pena desejar desaparecer daquele carro. Enquanto a estrela cadente passa, eu só desejo continuar a olhar para o céu e a apreciar as nuvens recortadas pelo luar, só desejo nunca ter a certeza sobre coisa nenhuma, nunca querer tirar a carta, nunca crescer. Porque crescer implica sempre querer mais. E eu não quero mais nada, porque aprendi que o vazio é a única coisa que ocupa o espaço quando a esperança morre. E às vezes ela morre precocemente, mesmo antes do coração parar.



O carro estaciona com um guincho e o motor aspira violentamente. Ele espera que eu cresça, mesmo que numa direcção oposta, mas sempre com o seu apoio. Porque ele vive só por esse apoio.

20070821

Há algo agora que não existia antes. Isso é certo. Mas mais que isso, há algo agora que subtrai a nossa proximidade, e torna o espaço maior e os nossos pensamentos mais distantes. Mas eu não sei dar-lhe nome. Talvez por isso tenha tanto medo.
É que antes, nunca tinha pensado em nada disto, o que me faz pensar que não existia. Cada dia era um dia, e tu entravas nos meus pensamentos tão depressa como saias pela porta do meu apartamento. E fugias pelos ouvidos tão rapidamente como tinhas entrado. Entregavas-me o teu corpo e os alguns enlaces da tua consciência, e eu sentia-te ali; mesmo quando tu dizias que um vazio crescia na porta do meu prédio. Esse vaco era o mesmo que me dava a certeza de que estava segura, e de que os dois estavamos ali de livre vontade, a aproveirar honestamente os minutos que queríamos aproveitar. E tudo estava bem, de alguma maneira.
Não estou a dizer que pensava que seria para sempre. Como tu bem sabes, eu não acredito no para sempre - principalmente porque tenho uma tendência natural para me entregar a ele e já sofri muito por isso (e isto não sabias tu). E com os anos e as proximidades e des-proximidades que já vivi, antecipo perfeitamente o início do fim. Aquele que se amonta com o pó das palavras não ditas, das opiniões caladas, dos segredos. E foi por isso que desde o início me decidi a ser honesta contigo (mesmo quando achavas que o fazia para te chocar), porque achei que se fosse honesta como nunca tinha sido com ninguém, não haveriam mentiras. Não te contava tudo, como é óbvio, mas as partes que te diziam respeito, na minha opinião. Foi patetisse, porque como eu bem sei, toda a gente esconde coisas. E eu tenho plena consciência, neste momento, que a tua impavidez para com os meus relatos não era tanto honestidade como o era um fingimento. Como o sei, não te posso responder. Mas agora que sei, com provas e teses, aterrei no meio do espaço que foste elaborando entre nós os dois. Talvez até eu o tenha elaborado sem ver.
E o que posso fazer agora quando te sinto sempre tão distante? Estás tão longe que daqui já nem reconheço a pessoa com quem falava ontem. E não sei o que fazer. O meu instinto diz-me para acabar com isto antes que deixe deteriorar o que ainda resta de mim. Mas não sei se é o instinto, ou o medo.

20070814

O mesmo espaço que requisitei para não sufocar plantou-me asas nas costas.

Tenho comichão. Quero sair da gaiola. Se continuo a cair neste mar de espaço ainda nos afogamos aos dois.

Lamento. E tu?

20070813

Abraça-me

A tarde pintava-se como um pêssego - pensavas tu. O ar morno colidia suavemente com o fresco mentolado da tua língua. E a luz peluda vibrava nas casas e nas varandas (e nas velhas de rosto gasto que vigiavam atrás das cortinas). O momento era doce, amarelado e suave como a casca de um pêssego - e mesmo assim perguntavas a ti mesmo onde estava aquela acidez melindrosa que tanto te picava nos pêssegos. Talvez a tarde seja um pêssego maduro e mole - dizias para ti mesmo - e por isso já não se sente aquele rasgo áspero do meio-dia. Ela chegou no preciso momento exacto em que o sol se despediu.

A noite crescia como a lua (mas mais rápido) enquanto os sapatos ecoavam contra o chão. O ar húmido apalpava-lhe as maçãs do rosto coradas enquanto as andorinhas e os pardais saltitavam no ar num frenesim urgente. Queria lhes perguntar porque corriam. Queria ser assim, feliz - hiperativa - descontrolada e esvoaçar sem razão nenhuma. A escuridão, gulosa e gorda, engolia as casas pintadas. As luzes acendiam-se duas-a-duas nos prédios. Sentado no degrau - ele já la estava - com as mãos nos joelhos a segurar a cabeça, sempre fixa nas estrelas. Sempre com a cabeça na lua.
A noite impelia-os a colarem os joelhos nus; a abraçarem-se como dantes: mas o tempo, que entretanto tinha deslizado matreiramente pelos telhados, pingava pequenas lagrimas dolorosas. Choravam saudades. E no entanto estavam ali - frente a frente. Tudo tinha mudado.
E aos seus olhos, tudo permanecia igual.
Mas fora dali, daquela noite, daquela estrada... já tudo estava diferente. Já a flauta não chilreava uma canção infantil de notas puras e concisas, mas a orquestra absolvia todo o público em misturas de sons de diferentes origens, subindo e descendo o tom e a gravidade como quem brinca - mas com toda a perícia.
Já nada é como dantes - pensaram ambos, em uníssono, como antigamente.
A flauta e as notas das suas imaginações cairam e espalharam-se pelo chão. Tinham frio demais para apanhar os pedaços. Ficaram ali, estáticos, a observar os cacos dos seus carinhos a serem lavados pela torrente de lágrimas e de tempo. Subitamente, ele deu-lhe a mão. Mas ela estranhou, estremeceu. Em resposta deu-lhe um beijo, um beijo lento, tépido, com sabor a pinhão. Ele sentiu os lábios secos e afastou-se. Nada. Só uma vontade de o possuir de novo, mas no passado. Ali, tudo aquilo era um erro.
Quando eu não estava com ela, tudo era diferente - pensou. Era tudo mais fácil, natural: as mensagens, as cartas, as declarações. Ele amava-a e era capaz de o gritar pelos kilómetros que os separavam até que os seus cabelos estremessessem com o poder da sua voz. Quando dormia via o seu corpo a pairar no ar. Quando acordava espreitava a sua fotografia. E tinha sempre presente o perfume que era ela. Ela era tudo, tudo. Ela era tudo.
Quando eu estava com ele, tudo era diferente - pensou, ao mesmo tempo, a rapariga. Era tudo fácil, quente, natural. Amava-o, e era capaz de estar com ele dias a fio sem que se fartasse, ou sequer sem que visse os segundos a passar encima das suas cabeças. Não precisava de luz do sol, nem precisavam de proferir uma palavra. O seu cheiro fazia o seu cérebro estremecer de prazer, e quando falavam, as suas palavras eram escutadas como se canalizasse tudo o que havia nela para ele. Só ele encaixava no seu abraço! Ele era tudo!
Mas no primeiro dia decidiram viver juntos.
E no segundo dia decidiram respirar.
No primeiro ele sufocou e ela tornou-se um peso presente, sempre obsoleto e nunca desejável pela sua excessiva permanência. A sua docura tornou-se enjoativa, o seu perfume enjoativo, o seu corpo ordinário - a sua voz mobília.
No segundo dia ela sentiu-se só e perdida. Queria vingar-se da frieza dele, suportar o vício insaciado, ser independente. Ocupou-se até à ponta dos cabelos. Reaprendeu a rir, a chorar, a viver. E esqueceu, grão a grão, a (agora) repulsiva forma do seu ex-amante.

E entre eles já não havia nada que pudesse sobreviver aos seus próprios desejos e personalidades. Já não encaixavam no mesmo abraço.

20070809

Nyota balança no escuro o seu pequeno bebé-órfão, e da sua máscara não escorre a mais pequena lágrima. A lua envergonhada não nasceu. E nada brilha esta noite, na savana, a não ser os olhos do recém-nascido.

Foi o espírito do ar que, nove meses antes, pediu o consentimento aos falecidos pais de Nyota. Mais ninguém no mundo lhe dava a mão. E ela deixou-se levar, pela mão, sentindo as pontas das ervas altas a acariciarem-lhe as palmas dos pés, deixando-as dormentes. E pouco a pouco, aquelas cócegas subiram em espiral pelas suas pernas lisas debaixo da saia, acariciaram-lhe o sexo e o ventre e aqueceram-lhe o peito, confortando o bater do seu coração, amaciando-lhe as axilas, o pescoço e as maçãs do rosto. No seu corpo, só os seus cabelos encarapinhados balançavam ligeiramente ao vento, como as copas das árvores frondosas. Os sons da noite vingavam aqui e ali, acordando-a da sua sonolência. Os demónios dos animais estavam despertos mesmo em noites tão escuras, e quando se começou a elevar no ar podia ver os olhos dos predadores a cercarem os pequenos animais que corriam como flechas por entre os arbustos. Subiu cada vez mais alto, elevando-se como uma pluma elevada no ar por um vento forte, sempre de mão dada ao ar. Ultrapassou a espessa camada de escuridão e mergulhou num oceano de estrelas cintilantes. Sentia o calor daqueles astros, estáticos no espaço, na sua pele. E de repente parou também. Sentiu o corpo do seu noivo contra o seu, como se o pudesse ver; fechou os olhos e viu-o realmente: era um homem alto e escuro como o céu da noite, mas os seus olhos derretiam qualquer pedra como se fossem uma chama vermelha. E usava o rosto nú, sem máscara, um rosto inexpressivo e cru. Ele beijou-a, primeiro suavemente, depois contraindo os lábios e sugando-lhe os poros como se quisesse realmente prová-la; empurravam as estrelas à sua volta abrindo espaço como doidos, e as suas pernas enrolaram-se nas dele como serpentes, como as suas línguas, como se tudo fosse assim e para sempre assim. Quando ele a pressionou e penetrou, sentiu o seu espírito estalar e dele saiu um mel quente, explodiu numa amnésia agri-doce.

Nyota acordou na palhota, sozinha com os ruídos da savana a acordar. Lá fora, o som de um tigre talvez. O medo arrepiou-lhe toda a espinha: mas não por causa do grande felino - por causa da lembrança de um homem sem máscara que a elevou nas estrelas do céu. O seu coração batia tão forte que arfava, e o corpo estava coberto com uma fina camada de suor brilhante. A sua máscara, intacta, batia ao ritmo do seu corpo na esteira. Nove meses depois nasceu o bebé. A rapariguinha ainda se casou para mascarar a sua surpresa. Mas também o bebé, como o ar do seu corpo, nasceu nu e incompleto, sem uma única farpa de madeida a proteger-lhe a face.
Os guerreiros viram nele uma ameaça, os anciãos viram nele uma maldição. Nyota foi encarregada de o oferecer aos espíritos, para que se acalmassem.

Balança o seu recém-nascido e olha-o uma única vez antes de o pousar numa improvisada cama de folhas. Vira as costas, prende a respiração, e esquece-o. Porque o povo das máscaras é mais forte que os demónios. E porque tem a sensação que a sua pequena cria mal-formada será criada por uma força bem mais poderosa do que o seu leite. Nem que seja a morte.

Ele desceu do seu oráculo de estrelas na hora marcada para ir buscar o seu bebé. Deu-lhe a mão e elevou-o cuidadosamente pelo ar da noite. A lua veio cumprimentá-lo, iluminando a savana.

O ar chamou-lhe homem.

20070808

Ele é um homem prático.
Um homem mecânico.
Binário. Básico.
Simples.
Esquematizado.

E por isso penso nele nesta base: sim não

O problema é que eu sou muito uma pessoa do talvez.

Então talvez não;

não é?

O que me assusta mais no homem, na morte e na existência, não é tanto a sua efemeridade mas a sua imortalidade enquanto vesígio - material, ideal ou genético.

Mau timing

(antes)

Só agora percebo quando dizes que precisas desesperadamente de um abraço.

(depois)

Porque agora também quero. Infelizmente, não é o teu.

(agora)

Obrigado na mesma.

Sabes o que é que eu acho? Acho que é tudo demasiado grande fora das nossa musculatura esqueléctica. Por mim, nunca saía de dentro de nós.

(Ou seja, de dentro do nosso ponto de vista)

Mas a mim colaram-me mal as órbitas, e elas têm uma tendência irritante para saltarem de um lado para o outro.

O que quero dizer é: quando as pessoas morrem, como é que morrem, se continuam a existir?Quando o cheiro delas paira no ar, ou numa roupa, não é o cheiro delas? E se é o cheiro delas, como é que podem estar mortas? As roupas delas, não são delas? Os momentos, não são com elas? E as lembranças, não são delas, as vidas, as casas, tudo?

E quando nos esquecemos, elas deixam de existir para sempre?

Então só existimos enquanto deixamos rasto? E quem vive para ser esquecido, como tu...

...nunca existiu?

Tenho saudades tuas. Não sei como posso explicá-las de maneira diferente. Tenho saudades da pessoa que era quando estava contigo, aquela que tenho tentado ser mas não consigo. E só agora me apercebi, que depois da tua morte, mantive-me viva a tentar sobreviver ao mim e a ti daquela altura. Porque tu exististe, dentro e fora de mim. Porque se eu soubesse tinha esgotado tudo para tu não teres esgotado o oxigénio no sangue, para tu não teres esgotado a dose nas veias.

20070807

Proximidade

O princípio da sua depressão foi um livro. Nada mais, nada menos que um livro qualquer (daqueles de leitura fácil), de capa dobrada pelo uso nos primeiros anos de edição. Agora, já quase ninguém lhe pegava. E tinha-lhe caído nas mãos, por acaso, e lido entre duas noites em branco. E o livro dissera-lhe:
- A vida é muito grande, e tu és demasiado pequena.
Não é que nunca ninguém lhe tivesse dito antes, em situações e temas piores. Mas daquela vez, fosse pelo tom informal da conversa ou pela claridade como era adimitido, um par de lágrimas rasgou-se-lhe nos olhos. E aí estava, a melancolia.

No início, só lhe apetecia um abraço. Apercebi-me logo que o que ela chamava "só um abraço", era na verdade a necessidade de sentir-se fundir com alguém e crescer no espaço, tornar-se maior, de forma a melhor combater a força esmagadora da revelação tão recente. E para ela, essa necessidade de proximidade tornou-se um combate constante: antes de mais, contra ela mesma. Claro que como imaginam, era uma pessoa pequena como outra qualquer, daquelas que tem dias bons, dias maus, metade espiríto e metade matéria. Para todo o caso, era igual a qualquer outra pessoa. O que em si ocupava muito, mas mesmo muito espaço (deixando-me por vezes claustrofóbico) eram as muralhas de pensamento platinado que tinha construído à sua volta. Essas muralhas eram o que chavama de "o seu espaço". O pior é que a um quarto de si, aquele espaço parecia gigantesco, e desnecessário - principalmente quando se deparava com o espaço ainda maior que sempre existiria por força da realidade. Esse quarto (metade do espírito) encontrou então o alvo excelente para a sua necessidade de contacto: um homem. Eu cheirava o homem há distância. Antecipei-o mesmo antes dela pensar nele. E ela aproximou-se, abruptamente, forçando as etapas plásticas das suas muralhas. O mundo é tão gi-gan-tesco. E eu sou tão pe-que-ni-na. - pensava, enrolada na cama dele. Mesmo quando estava longe, tinha um quarto reservado do seu coração. Estava sempre como subentendido nos seus pensamentos, fora um instante ou outro. Estava sempre numa terceira batida do coração.

Mas eu estava descançado. Pode parecer negligência da minha parte, mas além de SABER que era passageiro, entendia a sua necessidade de alguém com quem partilhar a solidão, para se sentir menos sozinha. Conheço também a maneira de nós, homens, pensarmos. Assim que ele se apercebesse da necessidade desesperada com que ela precisava dele (mesmo que fosse uma necessidade mais efémera que outra coisa), fugiria com medo. De uma maneira ou de outra, ia acabar depressa.

Mas como podem imaginar, as minhas certezas estavam longe de se concretizarem. Em breve senti-o conquistar mais um pouco dela, sentia o seu corpo também a necessitar da harmonia violenta com que trocavam de pele. Senti-a estremecer quando o perfume masculino lhe subia pelas narinas e lhe descia pelo ventre. Via de longe, como perito, o seu desejo e humidade a evaporarem-lhe pelos olhos. Nada seria como dantes.

Os meus receios cedo se revelaram na falta de segurança dela. Agora estava ainda mais sozinha, em contraste com a proximidade omnipresente que ele lhe oferecia. Eu dizia-lhe, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Ele também te mente, amor.
E ela escutava estas palavras com atenção e excitação, as mãos tremiam-lhe e suavam, falava alto e inflava o peito, pestanejava muitas vezes. E foi aí que percebi. Era exactamente isso que ela queria. Ela não queria que eu a encostasse contra o meu peito quente, a abraçasse e beijasse a testa. Não queria que eu lhe massajasse os pés e lhe contasse como o mundo era belo. Porque o medo daquela curta existência tornava-a sedenta: mas não de proximidade, como eu tinha pensado; mas antes de algo parecido mas mais profundo. Para contrapor a sua minuscula figura e manter as suas fronteiras, a minha menina queria sentir.

Afastei-me dela deixando nacos de pão no caminho, que nunca ninguém comeu. Talvez um dia volte. Anda deprimida, a minha menina. Diz que quer sentir. Implora-lhe ao seu homem que lhe minta, se for preciso - que lhe declare amor com o peito cheio, que ameaçe morrer de angústia por não ouvir a voz dela, que a beije sofregamente e que façam amor contra a parede do hall-de-entrada, como se não pudessem chegar ao quarto. Quer sentir isso tudo, porque é pequena, e parece-lhe que só assim as coisas se sentem maiores.

Mas ela também não consegue vencer as suas fronteiras.
E ele, como eu, ainda não a entende.
E eu, como ele, nunca a vou entender. Nem ela própria.

E ela continua deprimida. Por causa de um livro, digo-vos eu.

20070806

Fuga dos ponteiros

Ah... se eu fosse tudo aquilo que o calendário permite. Ou se eu fosse tudo aquilo que ele limita. Mas não: sou infeliz de outra maneira, como todas as pessoas que moram na segunda dimensão do segundo. Pensamos que somos eternos na nossa maneira de olhar as horas: mas até elas são nossas, uma invenção não terrena mas humana no seu desperdício. Efémera: as horas corrompem-nos porque são uma loucura intrinseca ao propósito correcto e real. As horas passam e ao olhar para ela passamos nós por nós mesmos, perdemo-nos num enlear de suicídios recicláveis mas nunca recuperáveis. Dizem que o mundo é nosso, mas ficamos no limite de um pedaço de plástico fronteiriço entre o que ele é e o que ele devia ser. (Devia ser aos olhos de quem? Aos nossos, que somos o centro do mundo). O sentido é muito importante no nosso mundo. Porque até a falta de sentido tem algum sentido. Tem de ter, ou não seria real. As palavras têm sentido, os números, as cores, o silêncio. O nosso sentido é insensível - é racional e frio como mármore. É o sentido do tempo. Corremos para o futuro com a certeza que um dia tudo acaba por lá. Contamos com a queda quando ainda estamos a criar asas. E se eu fosse tudo aquilo que o calendário permite, sentiria essa vida cronometrada que há debaixo dos músculos.

Mas é como se eu própria, e a minha vida, corressem em aspas numa outra dimensão, na narração de outra pessoa. Como se as sentisse desenrolarem-se num outro mundo ausente, paralelo a este: um mundo sem tempo. Neste calendário, o meu ser morre depressa e renasce com o sol a leste. Desloca-se tão depressa que não encontro traços negros da minha personalidade, só um movimento smi-transparente de luz quase invisível. Queria dizer: sou assim. Mas os danos colaterais da minha passagem provam que o desenho da minha pessoa no chão é difente. Não é o que quero, nem o que faço, nem o que digo. É diferente, é pior.

Pergunto-me se sou tudo aquilo que o calendário me diz que sou. E as lágrima sobem-me aos olhos, porque isso é tão feio.

E talvez seja só a esperança ignorante que me faz pressentir um outro eu, menos amargo, no mundo onde não há tempo.

Os beijos

A artífice queria pintar o amor nas bochechas de alguém. Ou então, quem sabe, esculpir o amor em forma de bochecha, o amor que ainda não existia na sua essência, mas apenas em ideia. E tinha a certeza que a pessoa escolhida para esculpir tal vestígio não se sentiria minimamente lesada: porque diz o protocolo (o a-b-c do amor) que a afeição está demarcada na face, e pouco no corpo.

As bochechas idealizadas pela artifice eram a personificação mais rechonchuda da eternidade. E através dela imortalizaria aquele sentimento tão omnipresente, que tornava o ar pesado à sua volta, como nuvens palpáveis de penas artificiais. Deliciada, baixava os olhos brilhantes sobre a sua matéria prima, enquando vibravam ao balanço da respiração do sono. Puxava o cabelo para trás, prendia-o num rabo de cavalo e identificava com atenção todos os pontos a serem moldados pelo seu talento. Eram a própria identidade da escultura que, a seus olhos, ainda não tinha nascido. Não tinham uma forma apolínea ou harmoniosa: eram antes difusas e leves nos poros. Eram o esboço da escultura.

A artifice não tinha mãos a medir: antevia as cores impressas nas bochechas amadas, já sentia o coração palpitar com os perfumes e a língua enrolar-se pelas dentadas gemidas na carne macia. O seu cérebro tremia de creatividade e os seus pulsos ansiosos electrificavam-se de doses de vontade. Só vontade.

A artífice queria pintar ou esculpir o amor nas bochechas de alguém. Mas enquanto alguém dormia, apercebeu-se que não tinha consigo a navalha, nem os lápis-de-cor. Olhou à sua volta desesperada como alguém que tem sede e não bebe. Mas nada: à sua volta, só a mesma madrugada de sempre - leda, quente e vagarosa.

A frustração arrepiou-lhe os pelos do antebraço. Só tinha beijos.