20070921

O sonho

Antes cabiam os avós, os pais, os tios, os primos, os irmãos, os cães, os gatos, os amigos, os inimigos, os trabalhos.

Só não havia espaço para a pessoa.
Então ela arranjou um sonho. E com ele podia fechar os olhos e existir.
E dentro do sonho havia um quarto, uma rua, um jardim; e era tudo dela - só dela e de mais ninguém.

Quando o mundo se tornava exaustivo de mais, e a multidão a comprimia à inexistência, a pessoa fechava os olhos e lá estava: o mesmo quarto, a mesma rua, o jardim: tão certos e concretos como ela, que do outro lado se sentia destroçada e semitransparente. Ali a pessoa existia, e quando chovia dançava na rua, de noite tomava banho com a janela aberta e gritava até que a sua voz fazia esvoaçar as pombas. Amava cada pedra, cada insecto que criou no seu mundo de sonho. Construiu a rua, casa a casa, e aos poucos imaginou pessoas - que moravam nas suas próprias casas mas que nunca delas saiam, e que ela espreitava pelas janelas e entre as cortinas para ver como viviam.

E irritava-se, quando do lado de fora poisavam a mão sobre o seu ombro e lhe perguntavam qualquer coisa. Raramente ela queria responder, e raramente a percebiam quando respondia. Apetecia-lhe chorar, por ela e pelos outros tantos: porque cá fora a sua vida desdobrava-se em muitas, tanto dela como dos outros, e a pessoa sofria com os problemas dela e com os dos outros. Apesar disso, não se ria com as felicidades de todos. Aliás, mesmo quando todos os outros estavam felizes, ela pensava em motivos para chorar.

E no seu sonho, continuava a poder existir. Era genuinamente feliz, como diziam ser impossível.
Foi assim que a pessoa decidiu deixar de viver. Porque se fechasse os olhos para sempre, habitaria eternamente o seu sonho. Matou-se da maneira mais fácil, e enquanto poisava as pestanas escutou pela última vez os soluços da avó, do pai, da mãe, dos primos, dos irmãos, dos tios. Mas não importava, a pessoa sabia que eles tinham aquela maneira rápida e produtiva de acordar de manhã e viver, mesmo que embatendo uns nos outros de vez em quando.

No seu sonho tudo permanecia igual. Foi infindavelmente feliz. Não precisava de dormir, nem de comer; andava descalça e nua, dançava sem vergonha, andava ao pé-coxinho. Um dia deu por si ligeiramente entediada e correu até à última casa que tinha criado antes de morrer. Observou atentamente tudo o que a pessoa fazia, até ao mínimo detalhe. Mas sabia, porque estas eram as suas próprias regras, que jamais podia trespassar a fina barreira de cimento que os separava. Mesmo que tentasse, (e tentou, mais tarde), as barreiras que ela tinha cimentado não se desmoronavam, e na sua morte lívida abdicou do poder de construir sonhos.

Porque só os vivos construíam sonhos e habitavam neles voluntariamente. Agora que já não sentia com clareza as veias a palpitarem-lhe no pulso, sentiu falta da mão de alguém no seu ombro. E das vozes que lhe causavam enxaquecas. A pessoa (que já não era pessoa) apercebeu-se que era um espírito. Quando fechava os olhos não sonhava.

Escreveu na palma da mão para nunca mais se esquecer:

homem: animal com duas pernas que sonha.


"Meu deus, um instante de felicidade, não basta já para uma vida inteira?"

Dostoievski

Recomeço

O dia nasceu asfixiado e embalado na surdina. Nem uma folha se atrevia a cair (apesar do Outono que as urgia a casar com a terra). O silêncio elevava a loucos os pequenos seres que acordavam com aquela madrugada. Mas nem um raio de sol se via a iluminar os barcos, e nenhuma gaivota acordava ruidosamente os pescadores. Tudo dormia naquela manhã - inclusive as pessoas que, forçosamente levantadas, caminhavam como mortos-vivos pelo porto: cambaleando, de olhos semicerrados e compactuando silenciosamente com a calma do dia.

Nessa noite tinha rebentado uma tempestade - a maior que presidia nas mentes recém-acordadas dos trabalhadores: as ondas raivosas competiam com os trovões, rebentando contra o cais com um barulho que ecoava entre os pilares, e as casas, e os sonhos das poucas pessoas que dormiam. A chuva atacava os telhados e os canos vazios como pedras; e desfazia, numa papa arenosa, o sal brilhante amontoado à porta das salinas. Não se ouviam os morcegos, nem os peixes escondidos debaixo da turbulência, só a violência do mar contra as pedras, e por vezes contra os armazéns à beira-mar. As gruas guinchavam com o vento que chocava contra as suas correntes e as faziam balançar com um rugido metálico. Os lobos-do-mar, com as barbas grisalhas húmidas de cerveja, esperavam pacientemente que a tormenta passasse. Sabiam que a raiva do mar é histérica, e que, mais cedo ou mais tarde, o sol possuí-la-ia com o seu pulso forte e quente. Então agarravam mais uma, e outra garrafa castanha, e bebiam em goles grossos a cerveja fresca.

O mar despertou gelado e transparente, mas tão quieto que se podia jurar que seria possível caminhar sobre ele. E foi quando as mulheres caminhavam em passos curtos para a igreja que o primeiro raio de sol brilhou ao longe, sobre um ponto inacessível do oceano. E ao longe outro, e outro, abriam brechas de algodão nas nuvens e doiravam o ar. O vento nasceu numa brisa segura e soprou as nuvens para os montes. As gaivotas abriram as asas e planaram sobre os cardumes, e depois, de barriga cheia, gritaram aos motores que vibravam na água. As mulheres enchiam com os seus risos agudos os quintais, e no ramo de uma árvore, uma borboleta-monarca desamachucava as sedosas asas. Dentro em pouco podia voar. Só mais uns minutos ao sol. Só mais uns instantes. Pequenos estalidos e...

voou...

20070919

The Shadow Sea

Too many rocks
Not enough breeze
To sail on out
Of your shadow seas

Too many sails
Not enough breeze

Of your shadow seas

To sail on out
Of your shadow seas


(patrick Wolf)

20070918

Impotência

Quem me dera ser como a música Cakewalking, dos YMG. Simples, directa, e no entanto profunda. Soa mal, não soa? Aww… disse que eu sou complicada, e eu sei que sou complicada e no entanto quem me dera que tivesse dito – Não, acho-te relativamente simples (mesmo depois disto, não se acanhem em dizê-lo). Quem me dera que não tivesse franzido os olhos e a testa, quem me dera que não tivesse murmurado qualquer coisa entre olhares, do género “Esquece.”

Como é que eu posso esquecer que há quem não goste de mim por uma maneira de estar involuntária, que existe em mim contra a minha própria vontade?
E eu juro-te, juro-te que sou boa pessoa. E juro que não sou uma má pessoa a dizer que sou boa pessoa só para te enganar.

E de alguma forma, ele não acredita. Abre as asas de plástico e voa para outros vinis.


 

20070904

Bifurcação

Ela acordou. Acordou, de repente, como se nunca tivesse adormecido. Não se lembrava sequer de ter encostado a cabeça à almofada - e no entanto, lá estava, afundada nas penas de pato. Dentro da sua cabeça decorria uma conversa interminável consigo mesma, mas os ouvidos (internos) molestados doíam como se tivessem estado encostados ao altifalante do telefone por tempo demais. Tentou perceber, no seu estado de perfeita sobriedade lúcida, o diálogo (que tão energéticamente lhe atravessava a cabeça de eixo a eixo). Mas sentia a pressão do crânio áspero contra a pele húmida e  
escorregadia. O longo sorriso que sempre lhe marcava o rosto comprido tentou
alterar-se, sem êxito.
Esforçou*se novamente por compreender as palavras, mas eram proferidas com tal
velocidade que só captava sílabas distantes umas das outras. 
Sempre que lhe parecia captar o significado de uma frase, 
outras sílabas surgiam que mergulhavam o seu sentido numa sopa de letras. 
Os olhos alargaram-se, escureceram, eespreitou para fora da cama.

O relógio estava colocado estratégicamente na mesa-de-cabeçeira. Tinha um rebordo vermelho, o fundo branco, e todos os números estavam ao
contrário daquilo que seria de esperar. E os próprios ponteiros mergulhavam no fundo
branco de segundo a segundo, voltando a reaparecer com um barulhento (e confortável)
- riing; rooong; riiing; rooong.
Ainda faltavam muitas horas, no entanto, para o despertador tocar. 
Até o seu flamingo azul, conhecido por ser  madrugador, ainda estava com a cabeça 
completamente entrerrada na areia castanha. Mas ela sabia que não valia a pena voltar a dormir, 
e esticou a barbatana tensa para fora das mantas.  

Lá fora na rua as borboletas já esvoaçavam dentro das suas bolhas coloridas. Subiam, subiam, subiam... E perguntou às duas vozes que discutiam dentro de si se sabiam para onde é que iam as borboletas. Mas as vozes pararam apenas por um momento, como quem lança um olhar de indignação, e depressa voltaram a encher-lhe o cérebro com guinchos e palavras. Parou ali por momentos, a imaginar as borboletas a chegar à suberfície do oceano e as suas bolhas de espuma pintada a explodir no ar azul, espalhando as cores nos arco-íris, do céu ao nascer do sol. 

E foi sí que soube: queria vê-lo. Queria ver as borboletas e até onde é que elas iam, queria sentir os raios dourados do sol aquecerem com o nascer do dia e a terra estalar com o frio e o orvalho gelado com o renascer da noite. Queria engolir aquele oxigénio mais puro perto das macieiras sobre as quais tanto tinha ouvido o avô falar. Os olhos alargaram-se ainda mais e ficaram ainda mais negros, e imaginou repetidamente a cena: ela, saltando pela gravidade, esticando o bico para com ele apanhar as maçãs e mastigar o seu sumo por entre os seus duzentos dentes brilhantes.

Escapuliu-se pela janela tão rápido como uma bala: o seu corpo escorregadio mal sentia os arranhões do sal. Subiu, subiu - passou pelos sofás que esbracejavam como plantas lentas sem pestanejar, atravessou a superfície e saltou. Mas nada. Nem de um lado, nem do outro: só o eterno oceano e as borboletas a marcarem estrelas lá em cima. Caíu pesadamente na água, deu uma volta e saltou com todo o impulso que conseguiu. Saltou mais alto, e mais alto, repetidamente, incansávelmente, em vão. Saltou à velocidade que as vozes falavam, maquinalmente, repetidamente, sempre de olhos no orizonte: e nada.

E foi assim que deu o mais maravilhoso salto de todos os tempos. Foi verdadeiramente um salto colossal. O seu corpo ergueu-se no ar e subiu em arco, o vento parou, as gotas brancas nem tiveram tempo de cair. E, no exacto momento em que alcançou o extâse do seu salto e procurava um horizonte inexistente, quando a decepção lhe subia aos olhos em lágrimas...

Mergulhou num espelho colocado bem acima da superfície do mar. O espelho chupou-o e engoliu-o como gelatina. O mundo deu a volta e caíu de novo na água. 

A menina puchou os cabelos loiros para trás e arregalou os olhos:
- Mãe, mãe! Olha, olha! Um golfiiinho... De onde é que ele veio?


Mas ela não fazia ideia que vinha do lugar onde os mundos se bifurcam.