20070612

Quem me dera dilacerar as palavras para que não fossem sequer lembranças. Quem me dera evitá-las ao centímetro e varrê-las de tudo o que pudesse ser a sombra do fantasma de uma comunicação perceptível. Seria possível, que sem as suas construções monstruosas, sem as imposições antecipadas, eu pudesse simplesmente estar.

20070602

Paz não é monotonia?

Fechou os olhos e inspirou fundo o ar da noite. Num lugar daqueles, o ar tem sempre uma densidade diferente - ou talvez o alcóol já lhe começasse a alterar a percepção. Descendo a colina, atrás das centenas de casa, ainda adivinhava um horizonte marítimo e os reflexos quentes do sol a espelhar na água. Talvez devessem descer a colina e mergulhar... mesmo depois do jantar! Virou-se e espreitou o marido por entre as flores da cortina - sem espanto, verificou que ele já dormia, com um pequeno brilho salivar a escorrer-lhe pelo canto direito da boca entreaberta.
Seria melhor fechar a janela, para não deixar os mosquitos entrar; mas aquela noite de verão estava tão quente e suave que decidiu deixá-la mesmo assim, escancarada. "E que se lixem os vizinhos também" - pensou. Segurou no máximo de garrafas de cerveja que pode, e levou-as com uma certa dificuldade até à cozinha. Acendeu a televisão enquanto lavava a loiça, mas também não dava nada de especial - o telejornal, tragédias, guerras - e lá para o meio, com sorte, uma vitória futebolística.
Tudo parecia demasiado calmo para um sábado. Mas se pensasse bem, talvez à muitos sábados fosse assim. Tinha-se casado à um par de anos - ou talvez à quatro, ou cinco? O tempo é mesmo um estado de espírito. Como levavam os dias, puxando-os num carro de bois, pouco tempo tinham para descansar e festejar o passar dos tempos. Não importava - a vida é assim. E no entanto, uma lasca de saudade percorre o corpo da mulher. Como um choque de nostalgia, a combater toda aquela apatia, procura lembrar-se do momento exacto no tempo em que desistiu de contar os anos.


Joana tinha 20 anos, e como todas as raparigas de vinte anos, queria algo extraordinário para a sua vida. No seu caso, não um emprego extraordinário, nem extraordinárias viagens - mas, simplesmente, uma vida extraordináriamente pacífica.

(Não - diz a mulher - foi antes disso.)

Joana tinha então 15 anos, e como todas as raparigas de quinze anos, queria algo fantástico na sua vida. No seu caso, não era ser fantásticamente popular, nem fantásticamente boa em alguma coisa. Ela só queria um beijo fantástico. "O" beijo. Isto pode parecer fútil a muita gente, mas para Joana, pouco importava. Aliás, não partilhava com ninguém o seu secretíssimo segredo - nunca tinha dado um beijo a ninguém. Não que não tivessem surgido oportunidades, mas porque Joana nunca tinha conhecido o rapaz perfeito no momento perfeito. Pelo menos, era o que lhe parecia. E ela queria que o seu primeiro beijo fosse tão bom, que todos os seus beijos seguintes iam sentir inveja daquele primeiro. Queria lembrar-se dele para o resto da sua vida - porque, afinal, já tinha passado o que lhe parecia muito tempo a pensar naquilo, e não podia ser em vão. Mas Joana foi ficando mais ansiosa, e cada vez mais ansiosa. Com o seu corpo já de mulherzinha, perguntava-se se alguma vez iria poder sucumbir às atenções de algum rapaz - que por aquela altura eram mais que muitas.
Foi então que chegou o verão - outro verão, à muitos anos. Joana, rodeada por alguns rapazinhos, já sentia a sexualidade fazer-lhe cócegas no estômago e as papilas a contrairem-se de cada vez que uma mão masculina lhe tocava. Mas havia mais - não pela primeira vez - Joana apaixonou-se perdidamente por um rapaz - só não sabia se era o perfeito. Consciente das atenções melosas que a rapariguinha lhe dava, o rapaz avançou. Mas ela não sabia se ele era "O" fantástico. Até que um dia, desistiu de esperar e entregou-se aos braços dele, deitando a perder a sua espera. Ou não. Porque aquele beijo, aqule singular e fantástico beijo formigou-lhe a espinha e vibrou-lhe até à ponta dos cabelos pretos. A partir daí, tudo foi fantástico. Davam longos passeios à noite, contemplando as estrelas; e longos passeios de dia, contamplando-se um ao outro, ou a qualquer outra coisa. Pouco importava - porque quando davam as mãos eram um, os corpor vibravam em uníssono. Às escondidas, colados um ao outro, com o corpo coberto de suor, sentia o palpitar forte do seu peito contra o dela, o seu corpo rigído, os seus dedos macios. Era tudo tão fantásticamente intenso, tão perfeitamente fantástico, que durante dias e dias qualquer capacidade de pensameto coerente foi chupada da cabeça de Joana pelos bonitos olhos do seu parceiro. E ela já tinha "O" beijo fantástico. E mais. Tinha "O" namorado fantástico. "A" primeira vez fantástica. Tudo era perfeito e ia continuar assim para sempre! Até que o verão acabou.
Joana não se recordava bem de como tinha terminado a relação dos dois. Lembrava-se de o ver menos, e menos vezes - e de pensar nele menos, e menos tempo. E depois já nunca mais pensava nele. Até ao dia em que se lembrou da sua existência, dos seus longos beijos, dos seus dedos quentes a afastarem-lhe o cabelo da cara e a puxarem-na pela cintura. E só aí chorou, desalmadamente, quando percebeu que o tinha perdido para sempre - mas que ele, tão perfeito, continuaria para sempre com ela. Ele era o seu principe encantado. Era todo "O" fantástico que poderia ter na vida. E já não fazia parte dela.

Foi então que decidiu que não queria mais nada de fantástico na sua vida. Nem beijos fantásticos, nem sexo fantástico, nem palavras fantásticas proferidas a meio da noite. Joana só queria uma existência pacífica. Mas não era assim tão diferente das outras raparigas.
Joana tinha 20 anos, e como todas as raparigas de vinte anos, queria algo extraordinário para a sua vida. No seu caso, não um emprego extraordinário, nem extraordinárias viagens - mas, simplesmente, uma vida extraordináriamente pacífica. Foi então que conheceu Jorge, e Francisco, e Fernando - por esta ordem. E depois casou com Jorge. Não se importava com a sua obcessão pelas arrumações, pelo medo dos estrangeiros que o levava a inúmeras confusões. Não ligava às suas incursões violentas, nem ao desleixo total do marido, ou ao mau hálito. A vida conjugal era pacífica, ele ajudava no que conseguia dado os limites da sua personalidade, lutando sempre com uma timidês crónica e um cérebro não-assim-tão-inteligente. Mas era tudo o que ela poderia pedir - fiel, e à sua maneira puro. Ainda não tinham filhos, mas era um desejo crescente nos dois. O sexo não era assim tão bom. Era normal. E nem por isso Joana era infeliz.


Nem por isso Joana é infeliz. Jorge, smi-acodado, cambaleia até à casa-de-banho. Não é o marido ideal, mas faz tudo o que pode. Joana, sentada no cadeirão, espera que a novela recomece. A vida é mesmo assim. "A vida é mesmo assim" - pensa. Não há sempre coisas extraordinárias e fantásticas para contar, a maior parte das vezes vivemos numa rotina leda e não há nada a fazer. Às vezes, ainda pensa no outro, no seu primeiro beijo. Mas pouco interessa agora - nunca mais o viu, e nem queria. O mundo está no lugar certo. Ao fundo do corredor, Jorge grunhe algo parecido com "Boa Noite".
Nem por isso são infelizes. Naturalmente, têm os seus bons e maus momentos, sendo que os últimos ficam mais tempo na cabeça por uma questão de temperamento. Já não vale é a pena contar os anos que lá vão. Porque não. Porque nem por isso são felizes também.

Estão naquela ténue linha que separa o sonho do pesadelo. Habitam na realidade.

"Também, porque os sapos, apesar de verdes, cheios de rugas, pegajosos e estranhos, duram mais que os principes encantados perfeitos. Como são colossalmente perfeitos, têm muita coisa a fazer no mundo." - pensa, mesmo antes do genérico da novela começar.
A suave melodia espalha-se pela sala. Assim como o ar quente e as memórias de outros tempos.


Paz não é monotonia? - Pergunta-lhe a sua fotografia, de 15 anos, em cima da lareira.