Fuga dos ponteiros
Ah... se eu fosse tudo aquilo que o calendário permite. Ou se eu fosse tudo aquilo que ele limita. Mas não: sou infeliz de outra maneira, como todas as pessoas que moram na segunda dimensão do segundo. Pensamos que somos eternos na nossa maneira de olhar as horas: mas até elas são nossas, uma invenção não terrena mas humana no seu desperdício. Efémera: as horas corrompem-nos porque são uma loucura intrinseca ao propósito correcto e real. As horas passam e ao olhar para ela passamos nós por nós mesmos, perdemo-nos num enlear de suicídios recicláveis mas nunca recuperáveis. Dizem que o mundo é nosso, mas ficamos no limite de um pedaço de plástico fronteiriço entre o que ele é e o que ele devia ser. (Devia ser aos olhos de quem? Aos nossos, que somos o centro do mundo). O sentido é muito importante no nosso mundo. Porque até a falta de sentido tem algum sentido. Tem de ter, ou não seria real. As palavras têm sentido, os números, as cores, o silêncio. O nosso sentido é insensível - é racional e frio como mármore. É o sentido do tempo. Corremos para o futuro com a certeza que um dia tudo acaba por lá. Contamos com a queda quando ainda estamos a criar asas. E se eu fosse tudo aquilo que o calendário permite, sentiria essa vida cronometrada que há debaixo dos músculos.
Mas é como se eu própria, e a minha vida, corressem em aspas numa outra dimensão, na narração de outra pessoa. Como se as sentisse desenrolarem-se num outro mundo ausente, paralelo a este: um mundo sem tempo. Neste calendário, o meu ser morre depressa e renasce com o sol a leste. Desloca-se tão depressa que não encontro traços negros da minha personalidade, só um movimento smi-transparente de luz quase invisível. Queria dizer: sou assim. Mas os danos colaterais da minha passagem provam que o desenho da minha pessoa no chão é difente. Não é o que quero, nem o que faço, nem o que digo. É diferente, é pior.
Pergunto-me se sou tudo aquilo que o calendário me diz que sou. E as lágrima sobem-me aos olhos, porque isso é tão feio.
E talvez seja só a esperança ignorante que me faz pressentir um outro eu, menos amargo, no mundo onde não há tempo.
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