O morto-vivo
Todos os homens no mundo querem mais do que aquilo que têm. E esta frase-cliché nunca foi mais verdadeira do que nos olhos pálidos do meu pai. Mesmo que os meus focassem a lua-cheia incansávelmente, sentindo apenas o irregular movimento da paisagem alterando os lados da janela - eu sentia os seus olhos extraordinariamente abertos - uma massa branca com uma gota verde-ardósia no centro, por trás dos grandes óculos de aros dourados. Estava escuro, e por isso não sei se chorava - talvez chorasse por dentro, e provavelmente mais tarde - com aquela força que tem de falar com a voz firme quando se desfaz por dentro (isto dito, sempre).
O peso de tudo aquilo que é invisível (a sociedade, os costumes, os astros e deus) caíram-lhe em cima com o peso do absoluto e esmagaram-no contra o centro de si mesmo. Tem uma figura alta, forte, e no entanto atarracada e algo curvada sobre o seu estômago proeminente. Como se suportando um peso que o comprimiu e encurtou o seu corpo. E ele já não acredita em nada a não ser nos gestos violentos, da mesma violência que o obrigou a deixar de ser quem quer que pudesse ser, e o fez ser aquele bloco de carne com vida. Ele já não acredita senão nas projecções de fogo das bombas, se não no sangue espeço a escorrer das órbitas dos poderosos. Ele já não acredita senão nos corações selectivos dos humanos, que o excluem de si mesmo. Ele à sua frente ele só dispõe de uma rotina que lhe dilacera a alma, de falhas à frente e atrás que condicionam todos aqueles que o rodeiam. Chamam-se Anarquista. Dizem-no Autoritário. E o que ele queria era tão simples como qualquer desejo de uma criança: ele queria a perfeição.
A perfeição dele decorre de raciocínios diferentes dos meus - e isso eu sei desde cedo. Porque se desdobra numa vingança - num repor da ordem que foi abolida quando nasceu. Porque o meu pai nunca teve uma vida fácil - e era até fácil demais escrevê-la aqui, muito mais fácil do que vivê-la. Poderia até dizer que teve uma vida mais difícil do que aquilo que podia aguentar - independentemente do que dizem sobre deus. Não foi, no entanto, uma vida mais difícil do que aquilo que o seu corpo de homem aguentaria. E é assim que o vejo: ele morreu. Sentado no deserto em cima de um escorpião ou espancado nas traseiras da sua casa. Comido vivo por comprimidos, ou implodido, ou por combustão espontânea. Dele, resta apenas a carcaça rugosa da sua pele, as mãos àsperas e um coração que implora por alguém que leia nas suas palavras a sinceridade com que ele as tempera.
O meu pai deseja que o país arda. Que as regras definhem de fome e que as pessoas lutem com garras e armas contra a democracia. Deseja que o desembrulhem do plástico sufocante que o impede de abrir os braços, de encher o peito ou de respirar. Que a desforra chegue: porque o enganaram - disseram-lhe que podia ser feliz. E é com a cabeça ligeiramente pendida para o lado que afirma que não é feliz. Que deseja todos os dias morrer, quando dorme o que pode dormir porque é a única forma de sonhar. Visualiza na estrada à sua frente como a sua vida podia ter sido, e pergunta-se se é aquilo que faz ou aquilo que tem a certeza que é na sua cabeça mas não faz. O meu pai é um assassino interior, é um suícida, um colérico. O meu pai não tem espírito, mas tem alma - embora esta esteja corrompida por anos a mais de sonhos podres. Conduzindo maquinalmente por cima dos seus sonhos, como todas as pessoas maduras fazem, olha para mim de esguia e diz-me que eu tenho perspectivas, ao contrário dele. Porque eu ainda tenho tantos anos nas mãos como ele tem revoltas.
Mas eu não o vejo, porque acabou de passar uma estrela cadente. E já não desejo que o meu pai seja feliz, porque tenho medo que a sua felicidade seja a desgraça de muita gente. Já não desejo que morra, porque ele está morto. Já nem vale a pena desejar desaparecer daquele carro. Enquanto a estrela cadente passa, eu só desejo continuar a olhar para o céu e a apreciar as nuvens recortadas pelo luar, só desejo nunca ter a certeza sobre coisa nenhuma, nunca querer tirar a carta, nunca crescer. Porque crescer implica sempre querer mais. E eu não quero mais nada, porque aprendi que o vazio é a única coisa que ocupa o espaço quando a esperança morre. E às vezes ela morre precocemente, mesmo antes do coração parar.
O carro estaciona com um guincho e o motor aspira violentamente. Ele espera que eu cresça, mesmo que numa direcção oposta, mas sempre com o seu apoio. Porque ele vive só por esse apoio.
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