20070806

Os beijos

A artífice queria pintar o amor nas bochechas de alguém. Ou então, quem sabe, esculpir o amor em forma de bochecha, o amor que ainda não existia na sua essência, mas apenas em ideia. E tinha a certeza que a pessoa escolhida para esculpir tal vestígio não se sentiria minimamente lesada: porque diz o protocolo (o a-b-c do amor) que a afeição está demarcada na face, e pouco no corpo.

As bochechas idealizadas pela artifice eram a personificação mais rechonchuda da eternidade. E através dela imortalizaria aquele sentimento tão omnipresente, que tornava o ar pesado à sua volta, como nuvens palpáveis de penas artificiais. Deliciada, baixava os olhos brilhantes sobre a sua matéria prima, enquando vibravam ao balanço da respiração do sono. Puxava o cabelo para trás, prendia-o num rabo de cavalo e identificava com atenção todos os pontos a serem moldados pelo seu talento. Eram a própria identidade da escultura que, a seus olhos, ainda não tinha nascido. Não tinham uma forma apolínea ou harmoniosa: eram antes difusas e leves nos poros. Eram o esboço da escultura.

A artifice não tinha mãos a medir: antevia as cores impressas nas bochechas amadas, já sentia o coração palpitar com os perfumes e a língua enrolar-se pelas dentadas gemidas na carne macia. O seu cérebro tremia de creatividade e os seus pulsos ansiosos electrificavam-se de doses de vontade. Só vontade.

A artífice queria pintar ou esculpir o amor nas bochechas de alguém. Mas enquanto alguém dormia, apercebeu-se que não tinha consigo a navalha, nem os lápis-de-cor. Olhou à sua volta desesperada como alguém que tem sede e não bebe. Mas nada: à sua volta, só a mesma madrugada de sempre - leda, quente e vagarosa.

A frustração arrepiou-lhe os pelos do antebraço. Só tinha beijos.

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