20070807

Proximidade

O princípio da sua depressão foi um livro. Nada mais, nada menos que um livro qualquer (daqueles de leitura fácil), de capa dobrada pelo uso nos primeiros anos de edição. Agora, já quase ninguém lhe pegava. E tinha-lhe caído nas mãos, por acaso, e lido entre duas noites em branco. E o livro dissera-lhe:
- A vida é muito grande, e tu és demasiado pequena.
Não é que nunca ninguém lhe tivesse dito antes, em situações e temas piores. Mas daquela vez, fosse pelo tom informal da conversa ou pela claridade como era adimitido, um par de lágrimas rasgou-se-lhe nos olhos. E aí estava, a melancolia.

No início, só lhe apetecia um abraço. Apercebi-me logo que o que ela chamava "só um abraço", era na verdade a necessidade de sentir-se fundir com alguém e crescer no espaço, tornar-se maior, de forma a melhor combater a força esmagadora da revelação tão recente. E para ela, essa necessidade de proximidade tornou-se um combate constante: antes de mais, contra ela mesma. Claro que como imaginam, era uma pessoa pequena como outra qualquer, daquelas que tem dias bons, dias maus, metade espiríto e metade matéria. Para todo o caso, era igual a qualquer outra pessoa. O que em si ocupava muito, mas mesmo muito espaço (deixando-me por vezes claustrofóbico) eram as muralhas de pensamento platinado que tinha construído à sua volta. Essas muralhas eram o que chavama de "o seu espaço". O pior é que a um quarto de si, aquele espaço parecia gigantesco, e desnecessário - principalmente quando se deparava com o espaço ainda maior que sempre existiria por força da realidade. Esse quarto (metade do espírito) encontrou então o alvo excelente para a sua necessidade de contacto: um homem. Eu cheirava o homem há distância. Antecipei-o mesmo antes dela pensar nele. E ela aproximou-se, abruptamente, forçando as etapas plásticas das suas muralhas. O mundo é tão gi-gan-tesco. E eu sou tão pe-que-ni-na. - pensava, enrolada na cama dele. Mesmo quando estava longe, tinha um quarto reservado do seu coração. Estava sempre como subentendido nos seus pensamentos, fora um instante ou outro. Estava sempre numa terceira batida do coração.

Mas eu estava descançado. Pode parecer negligência da minha parte, mas além de SABER que era passageiro, entendia a sua necessidade de alguém com quem partilhar a solidão, para se sentir menos sozinha. Conheço também a maneira de nós, homens, pensarmos. Assim que ele se apercebesse da necessidade desesperada com que ela precisava dele (mesmo que fosse uma necessidade mais efémera que outra coisa), fugiria com medo. De uma maneira ou de outra, ia acabar depressa.

Mas como podem imaginar, as minhas certezas estavam longe de se concretizarem. Em breve senti-o conquistar mais um pouco dela, sentia o seu corpo também a necessitar da harmonia violenta com que trocavam de pele. Senti-a estremecer quando o perfume masculino lhe subia pelas narinas e lhe descia pelo ventre. Via de longe, como perito, o seu desejo e humidade a evaporarem-lhe pelos olhos. Nada seria como dantes.

Os meus receios cedo se revelaram na falta de segurança dela. Agora estava ainda mais sozinha, em contraste com a proximidade omnipresente que ele lhe oferecia. Eu dizia-lhe, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Ele também te mente, amor.
E ela escutava estas palavras com atenção e excitação, as mãos tremiam-lhe e suavam, falava alto e inflava o peito, pestanejava muitas vezes. E foi aí que percebi. Era exactamente isso que ela queria. Ela não queria que eu a encostasse contra o meu peito quente, a abraçasse e beijasse a testa. Não queria que eu lhe massajasse os pés e lhe contasse como o mundo era belo. Porque o medo daquela curta existência tornava-a sedenta: mas não de proximidade, como eu tinha pensado; mas antes de algo parecido mas mais profundo. Para contrapor a sua minuscula figura e manter as suas fronteiras, a minha menina queria sentir.

Afastei-me dela deixando nacos de pão no caminho, que nunca ninguém comeu. Talvez um dia volte. Anda deprimida, a minha menina. Diz que quer sentir. Implora-lhe ao seu homem que lhe minta, se for preciso - que lhe declare amor com o peito cheio, que ameaçe morrer de angústia por não ouvir a voz dela, que a beije sofregamente e que façam amor contra a parede do hall-de-entrada, como se não pudessem chegar ao quarto. Quer sentir isso tudo, porque é pequena, e parece-lhe que só assim as coisas se sentem maiores.

Mas ela também não consegue vencer as suas fronteiras.
E ele, como eu, ainda não a entende.
E eu, como ele, nunca a vou entender. Nem ela própria.

E ela continua deprimida. Por causa de um livro, digo-vos eu.

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