20070813

Abraça-me

A tarde pintava-se como um pêssego - pensavas tu. O ar morno colidia suavemente com o fresco mentolado da tua língua. E a luz peluda vibrava nas casas e nas varandas (e nas velhas de rosto gasto que vigiavam atrás das cortinas). O momento era doce, amarelado e suave como a casca de um pêssego - e mesmo assim perguntavas a ti mesmo onde estava aquela acidez melindrosa que tanto te picava nos pêssegos. Talvez a tarde seja um pêssego maduro e mole - dizias para ti mesmo - e por isso já não se sente aquele rasgo áspero do meio-dia. Ela chegou no preciso momento exacto em que o sol se despediu.

A noite crescia como a lua (mas mais rápido) enquanto os sapatos ecoavam contra o chão. O ar húmido apalpava-lhe as maçãs do rosto coradas enquanto as andorinhas e os pardais saltitavam no ar num frenesim urgente. Queria lhes perguntar porque corriam. Queria ser assim, feliz - hiperativa - descontrolada e esvoaçar sem razão nenhuma. A escuridão, gulosa e gorda, engolia as casas pintadas. As luzes acendiam-se duas-a-duas nos prédios. Sentado no degrau - ele já la estava - com as mãos nos joelhos a segurar a cabeça, sempre fixa nas estrelas. Sempre com a cabeça na lua.
A noite impelia-os a colarem os joelhos nus; a abraçarem-se como dantes: mas o tempo, que entretanto tinha deslizado matreiramente pelos telhados, pingava pequenas lagrimas dolorosas. Choravam saudades. E no entanto estavam ali - frente a frente. Tudo tinha mudado.
E aos seus olhos, tudo permanecia igual.
Mas fora dali, daquela noite, daquela estrada... já tudo estava diferente. Já a flauta não chilreava uma canção infantil de notas puras e concisas, mas a orquestra absolvia todo o público em misturas de sons de diferentes origens, subindo e descendo o tom e a gravidade como quem brinca - mas com toda a perícia.
Já nada é como dantes - pensaram ambos, em uníssono, como antigamente.
A flauta e as notas das suas imaginações cairam e espalharam-se pelo chão. Tinham frio demais para apanhar os pedaços. Ficaram ali, estáticos, a observar os cacos dos seus carinhos a serem lavados pela torrente de lágrimas e de tempo. Subitamente, ele deu-lhe a mão. Mas ela estranhou, estremeceu. Em resposta deu-lhe um beijo, um beijo lento, tépido, com sabor a pinhão. Ele sentiu os lábios secos e afastou-se. Nada. Só uma vontade de o possuir de novo, mas no passado. Ali, tudo aquilo era um erro.
Quando eu não estava com ela, tudo era diferente - pensou. Era tudo mais fácil, natural: as mensagens, as cartas, as declarações. Ele amava-a e era capaz de o gritar pelos kilómetros que os separavam até que os seus cabelos estremessessem com o poder da sua voz. Quando dormia via o seu corpo a pairar no ar. Quando acordava espreitava a sua fotografia. E tinha sempre presente o perfume que era ela. Ela era tudo, tudo. Ela era tudo.
Quando eu estava com ele, tudo era diferente - pensou, ao mesmo tempo, a rapariga. Era tudo fácil, quente, natural. Amava-o, e era capaz de estar com ele dias a fio sem que se fartasse, ou sequer sem que visse os segundos a passar encima das suas cabeças. Não precisava de luz do sol, nem precisavam de proferir uma palavra. O seu cheiro fazia o seu cérebro estremecer de prazer, e quando falavam, as suas palavras eram escutadas como se canalizasse tudo o que havia nela para ele. Só ele encaixava no seu abraço! Ele era tudo!
Mas no primeiro dia decidiram viver juntos.
E no segundo dia decidiram respirar.
No primeiro ele sufocou e ela tornou-se um peso presente, sempre obsoleto e nunca desejável pela sua excessiva permanência. A sua docura tornou-se enjoativa, o seu perfume enjoativo, o seu corpo ordinário - a sua voz mobília.
No segundo dia ela sentiu-se só e perdida. Queria vingar-se da frieza dele, suportar o vício insaciado, ser independente. Ocupou-se até à ponta dos cabelos. Reaprendeu a rir, a chorar, a viver. E esqueceu, grão a grão, a (agora) repulsiva forma do seu ex-amante.

E entre eles já não havia nada que pudesse sobreviver aos seus próprios desejos e personalidades. Já não encaixavam no mesmo abraço.

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