20070724

Desceu ao fundo do poço pelas escadas de algodão (amargo) - ou seja - caiu e além disso tinha sérias alucinações. As pequenas almofadas negras que via ao descer não eram mais que restícios da luz que se estinguia a uma velocidade vertiginosa, que espicaçava os olhos a lacrimejarem. caiu e sentiu uma dor atroz - como ninguém pode entender. Quebrou todos os ossos do corpo. até ao mais ínfimo. Os músculos agonizaram contraídos contra o gelo glacial do fundo do poço. Queria gritar, mas a garganta ardia-lhe e mal respirava. Mas se queria que tudo ficasse bem, precisava de chegar ainda mais fundo. A pá que atirara estava intacta. Coxeou até ela, apalpando a parede rugosa na luz escura. Agarrou-a com as duas mãos (as articulações dos dedos estalaram) e começou a escavar.

O que mais odeio num texto é o facto de ele ser tão pessoal. Por mais que tente distanciar-me em pessoa, em género, no verbo: acaba sempre por evaporar uma partícula do meu cheiro. Mas contrário ao físico, só eu o sinto - tão presente e violento que o odeio.

20070723

O que fica no meio (parte 1 de 3)

Ela tinha um não-sei-o-quê que fazia as pessoas se sentirem mal. Eu conheci-a, uma vez, pessoalmente, e posso certificá-lo. Era como se a cara dela, mas toda a sua cara, fosse uma máscara mal planeada, e a sua roupa um vestuário desenquadrado para uma personagem mal construída. Não era que fosse (pelo menos não obviamente) má pessoa. Não tinha falhas de carácter. Na verdade, tinha o que só posso chamar de falhas de existência.
A maneira como andava não era a-normal mas tinha algo de peculiar. No entanto, não era um daqueles actos incomuns que desse vontade de explorar, era mais, uma característica que causava desconforto a quem caminhava ao seu lado. Como se ela não tivesse treinado bem os passos e por isso caminhasse ora rápido de mais, ora lento demais, ora cambaleando ligeiramente como se tivesse bebido.
A sua voz era nem feminina nem rouca. Não era nada atraente, para dizer a verdade. Como os passos, também oscilava entre um agudo que irritava os pêlos interiores do ouvido e o baixo surdo que não se entendia. Comia as palavras de um modo violento e por vezes extraviava o seu significado, pedindo emprestado outros subtilmente. Não sabia muitas coisas se não aquelas que toda a gente da sua idade sabia, e nada nela era em extremo. E se bem que a vida não deve viver de extremos, só assim tal personagem incompleta poderia ser verdadeiramente alguém. Mas tinha um não-sei-o-quê que nos deixava desconfortáveis.
Um dia, ao passar com ela pela montra de uma loja, apercebi-me que o seu reflexo não era exactamente como o meu. Para falar a verdade, não era nem um pouco como o meu - era mais difuso, esbranquiçado, como se uma luz intensa focasse as suas costas e a atravessasse, reflectindo um imenso buraco luminoso no interior dos contornos do seu corpo.
Como primeira particularidade que encontrava nele, não pude deixar de aprofundar a nossa "amizade".

A dúvida é: será que os grilos ficam roucos?

20070717

Nódoa Negra

Se me ardesse um pouco menos a garganta, gritava: estou a apaixonar-me. Mas doi-me, por dentro e por fora, contra-arte em circulos vermelhos no inicio da minha língua. E por isso, apenas murmuro sem som. Sílabas vazias como nós acabamos por ser, enterrados vivos por tantas palavras e pensamentos. Já nem somos a dor em si, a pancada da paixão na pele dorida, não somos a lâmina nem o fogo: somos a nódoa negra que fica e emerge, dia a noite, numa pele fina e fria.Porque estava - estava - a apaixonar-me. E entretanto, com um futuro tão prometedos como era naquele instante.. ficámo-nos apenas pela rouquidão. E pergunto ao outro lado se isso chega: e claro que chega. Chega o corpo, chega a pele, o silêncio da exigência que temos um do outro. Ou chegaria, se um dia, eu não tivesse pensado que me estava a apaixonar.

Um pequeno pássaro rastejou pela fenda das telhas e mordeu-me o lábio. Trazia-me um beijo - mas não era teu. Era uma dúvida queimada, de agulhas afiadas em vez de garras. Trazia-me o prenúncio do Adeus.

20070716

A história da minha vida não adiantava para me conheceres. Nem os sorrisos, nem as lágrimas ao longo do som absurdamente constante das contrações e distenções de células, os vai-vens eléctricos do músculo a que chamam coração. Porque a história, como esta estória, é reescrita e recontextualizada a cada palavra, cada letra, cada sinal. E por isso, não adiantava que te contasse a minha história. Porque mesmo que a narrasse exactamente como me recordo, livre de quaisqueres juízos (o que não faria), a minha recordação por si só já era uma amostra insuficiente e parcial do grande todo que é a minha vida. Com isto não penses que quero valorizá-la - não, pelo contrário - ao mesmo tempo que admito que é tão largamente poderosa reconheço a sua fraqueza: a história da minha vida já passou, e assim como o passado não existe materialmente, deixou apenas abrasões nervosas em mim, impressões acimentadas mas que não são, nem perto, aquilo que eu sou. Porque eu não sou o conjunto das minhas estórias.
Aí levantas a pergunta, que já antecipo na palidez sombria da tua íris: como te conheço. Ergues a sua interrogação bem acima das nossas cabeças, porque afinal, isso é o mais importante. É importante ser honesto, é importante ser transparente, e seguro, e tudo isso porque é importante conheceres com quem falas. Porque não posso ser simplesmente um texto em branco, ou um texto em preto, assim como tu também não - ou a nossa comunicação não seria mais do que (ou seria tanto como) um emaranhado de indefinições tão extensas e confusas como esta quantidade de adjectivos aborrecidos. Fora com as formalidades, tenho de ser alguém, porque se for ninguém a nossa conversa seria, por definição, uma conversa de um louco com o vazio (mesmo que esse vazio, como todos os outros, fosse completamente cheio).
A partir daqui esboço-te simplesmente que sou um exemplar da raça humana. Já sabes o sexo, a idade e as particularidades ínfimas de todos os milímetros do meu corpo (mais coisa menos coisa), mas, como eu sei, não é isso que queres saber. A tua pergunta é mais persistente e fura-me a pele fresca da nuca: quem sou. Nem te sorrio nem choro: não vale a pena. E tu achas, como todos, que eu finjo. Que há um motivo oculto, interior, verdadeiro, para tudo aquilo que eu sou - como se eu fosse o drama, o reflexo interior de uma essência necessitada de manifestação. E eu pergunto-te o que queres saber. Mas tu não queres uma resposta, queres uma manifestação. Queres uma palavra que não seja só palavra, mas união de todas as verdades sensibilizadas transformadas num só instante, que beije os pêlos brancos da tua orelha! Queres o todo que sou gritando em suor, queres o sorriso mais puro nevando nas tuas bochechas. E isso eu não posso ser. Porque o que eu sou, o que toda a gente é, não o é senão para si mesmo. E quanto menos pensamos na origem do que somos exteriormente, mais próxima dela estamos, porque o excesso de tentativas está condenado. Eu não sou mais nada senão tudo aquilo que não sou.
Perguntas-me de novo, extasiado da discussão, numa espécie de suspiro respirado: Quem és?