O que fica no meio (parte 1 de 3)
Ela tinha um não-sei-o-quê que fazia as pessoas se sentirem mal. Eu conheci-a, uma vez, pessoalmente, e posso certificá-lo. Era como se a cara dela, mas toda a sua cara, fosse uma máscara mal planeada, e a sua roupa um vestuário desenquadrado para uma personagem mal construída. Não era que fosse (pelo menos não obviamente) má pessoa. Não tinha falhas de carácter. Na verdade, tinha o que só posso chamar de falhas de existência.
A maneira como andava não era a-normal mas tinha algo de peculiar. No entanto, não era um daqueles actos incomuns que desse vontade de explorar, era mais, uma característica que causava desconforto a quem caminhava ao seu lado. Como se ela não tivesse treinado bem os passos e por isso caminhasse ora rápido de mais, ora lento demais, ora cambaleando ligeiramente como se tivesse bebido.
A sua voz era nem feminina nem rouca. Não era nada atraente, para dizer a verdade. Como os passos, também oscilava entre um agudo que irritava os pêlos interiores do ouvido e o baixo surdo que não se entendia. Comia as palavras de um modo violento e por vezes extraviava o seu significado, pedindo emprestado outros subtilmente. Não sabia muitas coisas se não aquelas que toda a gente da sua idade sabia, e nada nela era em extremo. E se bem que a vida não deve viver de extremos, só assim tal personagem incompleta poderia ser verdadeiramente alguém. Mas tinha um não-sei-o-quê que nos deixava desconfortáveis.
Um dia, ao passar com ela pela montra de uma loja, apercebi-me que o seu reflexo não era exactamente como o meu. Para falar a verdade, não era nem um pouco como o meu - era mais difuso, esbranquiçado, como se uma luz intensa focasse as suas costas e a atravessasse, reflectindo um imenso buraco luminoso no interior dos contornos do seu corpo.
Como primeira particularidade que encontrava nele, não pude deixar de aprofundar a nossa "amizade".
Sem comentários:
Enviar um comentário