20070716

A história da minha vida não adiantava para me conheceres. Nem os sorrisos, nem as lágrimas ao longo do som absurdamente constante das contrações e distenções de células, os vai-vens eléctricos do músculo a que chamam coração. Porque a história, como esta estória, é reescrita e recontextualizada a cada palavra, cada letra, cada sinal. E por isso, não adiantava que te contasse a minha história. Porque mesmo que a narrasse exactamente como me recordo, livre de quaisqueres juízos (o que não faria), a minha recordação por si só já era uma amostra insuficiente e parcial do grande todo que é a minha vida. Com isto não penses que quero valorizá-la - não, pelo contrário - ao mesmo tempo que admito que é tão largamente poderosa reconheço a sua fraqueza: a história da minha vida já passou, e assim como o passado não existe materialmente, deixou apenas abrasões nervosas em mim, impressões acimentadas mas que não são, nem perto, aquilo que eu sou. Porque eu não sou o conjunto das minhas estórias.
Aí levantas a pergunta, que já antecipo na palidez sombria da tua íris: como te conheço. Ergues a sua interrogação bem acima das nossas cabeças, porque afinal, isso é o mais importante. É importante ser honesto, é importante ser transparente, e seguro, e tudo isso porque é importante conheceres com quem falas. Porque não posso ser simplesmente um texto em branco, ou um texto em preto, assim como tu também não - ou a nossa comunicação não seria mais do que (ou seria tanto como) um emaranhado de indefinições tão extensas e confusas como esta quantidade de adjectivos aborrecidos. Fora com as formalidades, tenho de ser alguém, porque se for ninguém a nossa conversa seria, por definição, uma conversa de um louco com o vazio (mesmo que esse vazio, como todos os outros, fosse completamente cheio).
A partir daqui esboço-te simplesmente que sou um exemplar da raça humana. Já sabes o sexo, a idade e as particularidades ínfimas de todos os milímetros do meu corpo (mais coisa menos coisa), mas, como eu sei, não é isso que queres saber. A tua pergunta é mais persistente e fura-me a pele fresca da nuca: quem sou. Nem te sorrio nem choro: não vale a pena. E tu achas, como todos, que eu finjo. Que há um motivo oculto, interior, verdadeiro, para tudo aquilo que eu sou - como se eu fosse o drama, o reflexo interior de uma essência necessitada de manifestação. E eu pergunto-te o que queres saber. Mas tu não queres uma resposta, queres uma manifestação. Queres uma palavra que não seja só palavra, mas união de todas as verdades sensibilizadas transformadas num só instante, que beije os pêlos brancos da tua orelha! Queres o todo que sou gritando em suor, queres o sorriso mais puro nevando nas tuas bochechas. E isso eu não posso ser. Porque o que eu sou, o que toda a gente é, não o é senão para si mesmo. E quanto menos pensamos na origem do que somos exteriormente, mais próxima dela estamos, porque o excesso de tentativas está condenado. Eu não sou mais nada senão tudo aquilo que não sou.
Perguntas-me de novo, extasiado da discussão, numa espécie de suspiro respirado: Quem és?

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