Recomeço
O dia nasceu asfixiado e embalado na surdina. Nem uma folha se atrevia a cair (apesar do Outono que as urgia a casar com a terra). O silêncio elevava a loucos os pequenos seres que acordavam com aquela madrugada. Mas nem um raio de sol se via a iluminar os barcos, e nenhuma gaivota acordava ruidosamente os pescadores. Tudo dormia naquela manhã - inclusive as pessoas que, forçosamente levantadas, caminhavam como mortos-vivos pelo porto: cambaleando, de olhos semicerrados e compactuando silenciosamente com a calma do dia.
Nessa noite tinha rebentado uma tempestade - a maior que presidia nas mentes recém-acordadas dos trabalhadores: as ondas raivosas competiam com os trovões, rebentando contra o cais com um barulho que ecoava entre os pilares, e as casas, e os sonhos das poucas pessoas que dormiam. A chuva atacava os telhados e os canos vazios como pedras; e desfazia, numa papa arenosa, o sal brilhante amontoado à porta das salinas. Não se ouviam os morcegos, nem os peixes escondidos debaixo da turbulência, só a violência do mar contra as pedras, e por vezes contra os armazéns à beira-mar. As gruas guinchavam com o vento que chocava contra as suas correntes e as faziam balançar com um rugido metálico. Os lobos-do-mar, com as barbas grisalhas húmidas de cerveja, esperavam pacientemente que a tormenta passasse. Sabiam que a raiva do mar é histérica, e que, mais cedo ou mais tarde, o sol possuí-la-ia com o seu pulso forte e quente. Então agarravam mais uma, e outra garrafa castanha, e bebiam em goles grossos a cerveja fresca.
O mar despertou gelado e transparente, mas tão quieto que se podia jurar que seria possível caminhar sobre ele. E foi quando as mulheres caminhavam em passos curtos para a igreja que o primeiro raio de sol brilhou ao longe, sobre um ponto inacessível do oceano. E ao longe outro, e outro, abriam brechas de algodão nas nuvens e doiravam o ar. O vento nasceu numa brisa segura e soprou as nuvens para os montes. As gaivotas abriram as asas e planaram sobre os cardumes, e depois, de barriga cheia, gritaram aos motores que vibravam na água. As mulheres enchiam com os seus risos agudos os quintais, e no ramo de uma árvore, uma borboleta-monarca desamachucava as sedosas asas. Dentro em pouco podia voar. Só mais uns minutos ao sol. Só mais uns instantes. Pequenos estalidos e...
voou...
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