Bifurcação
Ela acordou. Acordou, de repente, como se nunca tivesse adormecido. Não se lembrava sequer de ter encostado a cabeça à almofada - e no entanto, lá estava, afundada nas penas de pato. Dentro da sua cabeça decorria uma conversa interminável consigo mesma, mas os ouvidos (internos) molestados doíam como se tivessem estado encostados ao altifalante do telefone por tempo demais. Tentou perceber, no seu estado de perfeita sobriedade lúcida, o diálogo (que tão energéticamente lhe atravessava a cabeça de eixo a eixo). Mas sentia a pressão do crânio áspero contra a pele húmida e
escorregadia. O longo sorriso que sempre lhe marcava o rosto comprido tentou
alterar-se, sem êxito.
Esforçou*se novamente por compreender as palavras, mas eram proferidas com tal
velocidade que só captava sílabas distantes umas das outras.
Sempre que lhe parecia captar o significado de uma frase,
outras sílabas surgiam que mergulhavam o seu sentido numa sopa de letras.
Os olhos alargaram-se, escureceram, eespreitou para fora da cama.
O relógio estava colocado estratégicamente na mesa-de-cabeçeira. Tinha um rebordo vermelho, o fundo branco, e todos os números estavam ao
contrário daquilo que seria de esperar. E os próprios ponteiros mergulhavam no fundo
branco de segundo a segundo, voltando a reaparecer com um barulhento (e confortável)
- riing; rooong; riiing; rooong.
Ainda faltavam muitas horas, no entanto, para o despertador tocar.
Até o seu flamingo azul, conhecido por ser madrugador, ainda estava com a cabeça
completamente entrerrada na areia castanha. Mas ela sabia que não valia a pena voltar a dormir,
e esticou a barbatana tensa para fora das mantas.
Lá fora na rua as borboletas já esvoaçavam dentro das suas bolhas coloridas. Subiam, subiam, subiam... E perguntou às duas vozes que discutiam dentro de si se sabiam para onde é que iam as borboletas. Mas as vozes pararam apenas por um momento, como quem lança um olhar de indignação, e depressa voltaram a encher-lhe o cérebro com guinchos e palavras. Parou ali por momentos, a imaginar as borboletas a chegar à suberfície do oceano e as suas bolhas de espuma pintada a explodir no ar azul, espalhando as cores nos arco-íris, do céu ao nascer do sol.
E foi sí que soube: queria vê-lo. Queria ver as borboletas e até onde é que elas iam, queria sentir os raios dourados do sol aquecerem com o nascer do dia e a terra estalar com o frio e o orvalho gelado com o renascer da noite. Queria engolir aquele oxigénio mais puro perto das macieiras sobre as quais tanto tinha ouvido o avô falar. Os olhos alargaram-se ainda mais e ficaram ainda mais negros, e imaginou repetidamente a cena: ela, saltando pela gravidade, esticando o bico para com ele apanhar as maçãs e mastigar o seu sumo por entre os seus duzentos dentes brilhantes.
Escapuliu-se pela janela tão rápido como uma bala: o seu corpo escorregadio mal sentia os arranhões do sal. Subiu, subiu - passou pelos sofás que esbracejavam como plantas lentas sem pestanejar, atravessou a superfície e saltou. Mas nada. Nem de um lado, nem do outro: só o eterno oceano e as borboletas a marcarem estrelas lá em cima. Caíu pesadamente na água, deu uma volta e saltou com todo o impulso que conseguiu. Saltou mais alto, e mais alto, repetidamente, incansávelmente, em vão. Saltou à velocidade que as vozes falavam, maquinalmente, repetidamente, sempre de olhos no orizonte: e nada.
E foi assim que deu o mais maravilhoso salto de todos os tempos. Foi verdadeiramente um salto colossal. O seu corpo ergueu-se no ar e subiu em arco, o vento parou, as gotas brancas nem tiveram tempo de cair. E, no exacto momento em que alcançou o extâse do seu salto e procurava um horizonte inexistente, quando a decepção lhe subia aos olhos em lágrimas...
Mergulhou num espelho colocado bem acima da superfície do mar. O espelho chupou-o e engoliu-o como gelatina. O mundo deu a volta e caíu de novo na água.
A menina puchou os cabelos loiros para trás e arregalou os olhos:
- Mãe, mãe! Olha, olha! Um golfiiinho... De onde é que ele veio?
Mas ela não fazia ideia que vinha do lugar onde os mundos se bifurcam.
escorregadia. O longo sorriso que sempre lhe marcava o rosto comprido tentou
alterar-se, sem êxito.
Esforçou*se novamente por compreender as palavras, mas eram proferidas com tal
velocidade que só captava sílabas distantes umas das outras.
Sempre que lhe parecia captar o significado de uma frase,
outras sílabas surgiam que mergulhavam o seu sentido numa sopa de letras.
Os olhos alargaram-se, escureceram, eespreitou para fora da cama.
O relógio estava colocado estratégicamente na mesa-de-cabeçeira. Tinha um rebordo vermelho, o fundo branco, e todos os números estavam ao
contrário daquilo que seria de esperar. E os próprios ponteiros mergulhavam no fundo
branco de segundo a segundo, voltando a reaparecer com um barulhento (e confortável)
- riing; rooong; riiing; rooong.
Ainda faltavam muitas horas, no entanto, para o despertador tocar.
Até o seu flamingo azul, conhecido por ser madrugador, ainda estava com a cabeça
completamente entrerrada na areia castanha. Mas ela sabia que não valia a pena voltar a dormir,
e esticou a barbatana tensa para fora das mantas.
Lá fora na rua as borboletas já esvoaçavam dentro das suas bolhas coloridas. Subiam, subiam, subiam... E perguntou às duas vozes que discutiam dentro de si se sabiam para onde é que iam as borboletas. Mas as vozes pararam apenas por um momento, como quem lança um olhar de indignação, e depressa voltaram a encher-lhe o cérebro com guinchos e palavras. Parou ali por momentos, a imaginar as borboletas a chegar à suberfície do oceano e as suas bolhas de espuma pintada a explodir no ar azul, espalhando as cores nos arco-íris, do céu ao nascer do sol.
E foi sí que soube: queria vê-lo. Queria ver as borboletas e até onde é que elas iam, queria sentir os raios dourados do sol aquecerem com o nascer do dia e a terra estalar com o frio e o orvalho gelado com o renascer da noite. Queria engolir aquele oxigénio mais puro perto das macieiras sobre as quais tanto tinha ouvido o avô falar. Os olhos alargaram-se ainda mais e ficaram ainda mais negros, e imaginou repetidamente a cena: ela, saltando pela gravidade, esticando o bico para com ele apanhar as maçãs e mastigar o seu sumo por entre os seus duzentos dentes brilhantes.
Escapuliu-se pela janela tão rápido como uma bala: o seu corpo escorregadio mal sentia os arranhões do sal. Subiu, subiu - passou pelos sofás que esbracejavam como plantas lentas sem pestanejar, atravessou a superfície e saltou. Mas nada. Nem de um lado, nem do outro: só o eterno oceano e as borboletas a marcarem estrelas lá em cima. Caíu pesadamente na água, deu uma volta e saltou com todo o impulso que conseguiu. Saltou mais alto, e mais alto, repetidamente, incansávelmente, em vão. Saltou à velocidade que as vozes falavam, maquinalmente, repetidamente, sempre de olhos no orizonte: e nada.
E foi assim que deu o mais maravilhoso salto de todos os tempos. Foi verdadeiramente um salto colossal. O seu corpo ergueu-se no ar e subiu em arco, o vento parou, as gotas brancas nem tiveram tempo de cair. E, no exacto momento em que alcançou o extâse do seu salto e procurava um horizonte inexistente, quando a decepção lhe subia aos olhos em lágrimas...
Mergulhou num espelho colocado bem acima da superfície do mar. O espelho chupou-o e engoliu-o como gelatina. O mundo deu a volta e caíu de novo na água.
A menina puchou os cabelos loiros para trás e arregalou os olhos:
- Mãe, mãe! Olha, olha! Um golfiiinho... De onde é que ele veio?
Mas ela não fazia ideia que vinha do lugar onde os mundos se bifurcam.
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