20070522

História de amor

Era uma vez uma flor carnívora e um dente-de-leão. A flor carnívora era daquelas flores que só era bonita aos olhos de quem a via. E esta em questão, nem por isso era muito colorida. Ninguém sabia quem a tinha magoado - e ninguém perguntava - (porque eram) assuntos pessoais. E a gigantesca flor carnívora, pouco balançava ao vento, mas gemia - naquela língua silenciosa das plantas que pouca gente fala.
Gemia porque no seu interior um bocadinho de tecido tinha sido rasgado, sem ninguém reparar - e à vista de todos. E a flor gemia. E os dias passavam.
As flores não aguentam muito tempo, por si só. E muito menos quando estão rasgadas, porque vão secando e morrendo, ficando amareladas à medida que as horas passam. Depois estaladiças até se partirem com a mais leve brisa de sol. Foi isso que aconteceu à grande flor carnívora. Secou, pouco a pouco, tirando a beleza de todo o jardim com o seu aspecto. Qualquer flor que se aproximasse sentia o cheiro a morte que ela exalava. E mesmo que, por alguma razão, não sentissem aquele presságio fétido, ela própria afastava-as consciente que as suas raízes não aguentariam a disputa de água que implica o contacto mais próximo.
Ora um dia uma erva daninha cresceu atrás da flor carnívora, sem que ela se apercebesse. As ervas daninhas têm esse dom, de crescer depressa e sem serem vistas. De um dia para o outro lá estava. E as suas raízes finas enrodilharam-se na da moribunda, e pingavam água para as suas. A flor carnívora não queria, mas habituou-se. O hábito é um sintoma perturbador - e passado algum tempo até sentiria a diferença se ela se fosse embora. Mais algum tempo sentia falta. Mais tempo e sentia saudade. E quando à noite a erva daninha dormia, a flor carnívora sentia saudade, e ansiava que o sol nascesse para poder ouvir as joaninha a treparem o seu caule e o vento a dançar com as suas flores. Havia dias em que a erva-daninha estava triste, e chorava - e a planta carnívora aprendeu a confortá-la, aprendeu, habituou-se - e até gostava.
A erva daninha também não era perfeita e por vezes deixava escapar leves secreções de hábito, e pensava para consigo - como a flor carnívora era diferente das outras. Primeiro essa diferença atraíu-o a brotar por ali. Mas agora, agora que via as outras no outro canteiro, com as pétalas brancas e vermelhas viradas para o sol, tudo aquilo lhe parecia horrivelmente... aborrecido. Não queria magoar a planta, não tinha nada a ver com isso. Mas quando a primavera brilhou no jardim e a planta carnívora continuou igual, não podia evitar admirá-las! Foi assim que começou, inconscientemente (porque as plantas têm uma consciência muito limitada), a planear soltar-se e voar para o outro lado.
A planta carnívora, muito antes disto, avisada pelas feridas abertas, tentou deslocar as suas raízes. Mas cada posição era mais desconfortável que a outra; a erva daninha não reparava mas tecia comentários que, tendo como intenção trazer-lhe um sorriso às pétalas, eram como pequenas gotas ácidas nos veios doentes da planta carnívora. Porque ela não era tão grande como parecia, e o seu centro já seco doía-lhe como nunca. Lutou para se afastar. E nada. Nem um milímetro se consegua mexer.

Antes que a erva daninha voasse para longe,
a flor carnívora secou e apodreceu no chão.
(Das suas energias nasceram outras, mais bonitas,
e com histórias de amor tão mais legíveis que esta).

E foi melhor assim. Fim

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